depois de tantos anos usando aquelas lentes mágicas, quase milagrosas, ele podia finalmente se ver longe delas. ao tirar seus óculos e se olhar no espelho, um arrepio lhe percorreu a espinha. era a primeira vez em uma eternidade que ele se enxergava novamente, de verdade, sem precisar da ajuda de nenhum outro utensílio além de seus próprios olhos castanhos. agora, sem os seus óculos, ele precisava se reinventar. ou melhor, precisava se redescobrir.
aquelas lentes estavam há tanto tempo atreladas ao seu corpo, ao seu ser, que ele estava apreensivo de se ver afastado delas. será que seus olhos dariam conta de enxergar sozinhos toda a loucura que os cercava? afinal, eles estavam desacostumados a lidar com tantas informações por conta própria. parado em frente ao espelho sujo do corredor, ele chegou a pensar se aquela era mesmo a sua imagem real, se ele sempre fora daquele jeito, ou se a não-necessidade das duas ex-lentes mágicas teria modificado a sua figura.
essa desconfiança era motivada por uma percepção diferente da realidade, já que agora a sua perspectiva não estava mais emoldurada por uma armação arredondada. antes, além de melhorarem a sua visão, os seus óculos também serviam como escudo: eram uma barreira, ainda que quase imaginária, entre ele e o resto do mundo. sem eles, o rapaz sentia-se desprotegido, desamparado, quase nu. não poder se esconder atrás das suas lentes anti-reflexo eram uma experiência nova. ele, que sempre quis se ver livre da obrigatoriedade do uso dos óculos, percebeu que se apoiava neles e nos conceitos pré-fabricados que as outras pessoas traziam quando lidavam com alguém de óculos. era uma bobagem, sim, mas ele sabia que se aproveitava disso, bem lá no fundo. agora já não dava mais pra dizer pra colega de trabalho que ele não deu oi quando cruzou com ela no mercado porque não enxergava de longe, por exemplo. também não dava pra evitar a leitura de um texto, ou qualquer outra coisa desse tipo. não havia mais a possibilidade de se esconder atrás das lentes pra fugir de certas situações.
seus olhos não teriam mais folga nenhuma, agora eles precisariam funcionar sozinhos o tempo inteiro. ele sempre quis essa independência, mas agora que a tinha, ficou sem saber o que fazer com ela.