terça-feira, 20 de março de 2018

88 anos, 8 meses e 14 dias


dona cida nasceu em 1929, lá no começo do século passado, e se despediu da gente há menos de uma semana.

filha de imigrantes italianos, nascida e criada em fazenda no interior do estado de são paulo, veio morar na capital e, aqui, conheceu o futuro marido: um alagoano descendente de negros e índios, um ano mais novo que ela. juntos, eles tiveram quatro filhos. um deles, o mais velho, é o meu pai. 

e isso é basicamente tudo o que eu sei sobre a história dela. 

minha avó me contou quando e como conheceu o meu avô, mas eu não sei quando eles se casaram. não sei se foi por "amor à primeira vista", se foi por pressão familiar, se foi porque os dois conversaram e decidiram que era a melhor das opções. ela nunca foi de falar muito sobre a própria vida. às vezes, no meio de alguma conversa, ela me contava casos aleatórios sobre eles, mas nunca em quantidade suficiente pra eu conseguir montar uma linha do tempo, por exemplo. dona cida era fechada demais, não se dava ao luxo de falar mais do que devia. não sei do que ela trabalhou, não sei quais planos ela tinha feito quando era menina, não sei sequer qual era a cor preferida da minha avó - mas associo a ela um tom bonito de azul claro, meio céu, meio piscina: a cor dos olhos dela.

apesar dessa carinha aí da foto, a dona cida nunca fez aquele estilo padrão de avó que eu via na tv. o meu sonho era ser neta da dona benta, pra comer um monte de coisa gostosa todas as tardes. dona cida só cozinhava porque comer faz parte da vida, não tinha essa de ficar fazendo bolinho pra agradar neto. lembro que uma vez fui almoçar com ela e reclamei que não queria comer o chuchu. como resposta, ouvi "você tá na minha casa, vai comer o que eu fiz. se não quiser, fica com fome". ela era grossa e mal educada como ninguém. mas não posso negar que às vezes batia uma inspiração e ela tentava encarnar a vovó bonitinha. fizemos rabanada juntas uma vez. não sei como é que conseguimos errar tanto, mas depois disso nunca mais nos arriscamos a tentar de novo. muitos anos depois, ela ainda dava risada lembrando dessa tentativa absolutamente frustrada.

ela era super irritada, não tinha paciência pra nada. vivia falando que tava com raiva das coisas, das pessoas. tudo era motivo pra mulher ficar de cara fechada. e sem precisar dizer uma palavra, ela já botava medo nos netos (ameaçava sempre com um chinelo na mão) e afugentava os vizinhos. mas por dentro ela era frágil que só. a menor das coisas já magoava a minha avó, ainda que ela tentasse ao máximo não deixar transparecer.

ela sofreu muito. guardou mágoa e rancor durante a vida inteira, se recusou a fazer os tratamentos de saúde que poderiam ter aliviado as dores que ela sentia, engoliu muito sapo enquanto foi casada... dona cida passou por tanta coisa nesses quase 90 anos que nem dava pra acreditar. lembro de olhar pra ela quando eu era pequena e pensar que a minha avó, tão alta, tão rígida, deveria ser uma fortaleza. de uns anos pra cá, ela já era só ruína.

mas ainda assim, mesmo já quase sem força nenhuma, esse ano ela ainda foi capaz de provar que o ditado popular é verdadeiro: vaso ruim não quebra. ou, pelo menos, dá mais trabalho do que o normal. aos 88 anos, lúcida mas com o corpo absolutamente debilitado, minha avó enfrentou um avc, deu um chapéu numa pneumonia e ainda lidou com outras infecções que vieram depois. eu sinceramente não pensei que ela fosse aguentar uma semana, mas ela ainda persistiu por dois meses. foi sofrido, foi ruim de ver, mas era a história dela. e ela aguentou até o final com uma força que eu não faço ideia de onde é que saía. 

dona apparecida, com 2 pês (eu achava tão chique esse nome), me deixou uma saudade tão grande que eu acho que nunca vai passar. mas eu sei que ela não via a hora de finalmente poder descansar em paz, sem sentir aquelas dores que viviam com ela há tanto tempo. por mais difícil que seja a despedida, eu sei que era egoísta demais querer que ela continuasse por aqui. já tava na hora de dizer tchau.

a vovó já foi, mas o amor e as lembranças vão ficar aqui bem guardadinhos até o fim da minha caminhada.

2 comentários:

  1. que texto lindo, paulis! li com lagriminha nos olhos do inicio ao fim. reconheço muito a minha avó nas suas palavras, essa fragilidade por trás da cara fechada. à maneira dela, tenho certeza que dona cida foi uma mulher incrível. assim como vc também é :')

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